O quê no quando


 "Sometimes a cloud is just a cloud."

- Fruit Bats, "Cazadera" -

"O que você vê quando olha esta imagem?"

    Quantas vezes essa pergunta me foi feita? 
    Por menos que eu queira, essa sempre me será uma pergunta retórica. 
    Não tenho o talento de contabilizar, quiçá memórias. 

É possível contabilizar memórias?

    Foi na minha graduação, nos primeiros semestres do curso de Letras, em disciplinas ementadas sob propostas adjetivadas como "fundamentais" de artes e, principalmente, literatura. Nossa professora mostrou (várias e dentre elas) uma projeção por datashow organizada em PowerPoint de uma imagem baixada da internet da tela "Shoes" (1886), de Vincent Van Gogh (detalhes importantes para destacar o fato de que eu nunca vi nenhuma tela propriamente dita do Van Gogh até o momento em que escrevo estas divagações). Diante da tela projetada na superfície suja, encardida e rabiscada do quadro (ou parede) da sala de aula, esta (um tanto quanto fatídica) pergunta foi atirada:

"O que vocês veem quando olham esta imagem?"

- Silêncio, calor, ventilador, tensão...-

    Na tentativa de quebrar aquele constrangimento escolar causado principalmente por perguntas repetidas maquinalmente para as quais sentimos que talvez haja tantas respostas possíveis que são as mesmas que nenhuma, alguém quase que sussurra em tom interrogativo:

"Um par de botinas?"

Concisa e eficaz que, na esfera de toda lógica possível, parece a única plausível, pois a maioria pensou exatamente a mesma coisa, mas que antes de ser verbalizada parecia a resposta mais idiota de todas.

        É o prana!

        A confirmação da professora - que nunca nega nem afirma a existência de certo grau de idiotice - é o "lance de dados" mallameriano diante da impossibilidade de abolir o acaso.
        É um par de botinas aparentemente desgastadas pelo uso constante.
        Há uma série de condutas interpretativas que são exploradas no exercício de responder o quê no quando: históricas, sociais, culturais, biográficas, técnicas, cada uma, todas elas. 
       Contudo, algo sobra ou falta no ato de "ver/explicar" um objeto artístico (ou qualquer coisa), pois (na hipocrisia do conectivo explicativo) há algo de subjetivação - de origem e/ou de destino - que paira.
Vê-se Arte,
Vê-se uma tela,
Vê-se botinas,
Vê-se trabalho,
Vê-se cansaço...
Vê-se nada
        Eu não sei o que vejo e ainda tento explicar o que sinto no meu encontro com a arte de Van Gogh. Existe uma identificação indireta de experiência afetiva entre o que eu vejo e o que sinto diante de uma arte - projetada - dele [é um par de botinas]. 
        Já adulta e graças a popularização ('comercial, 'capital', 'mercantil', 'reprodutibilidade', 'reificada', essas coisas que não faço muita questão de entender dentro das discussões sobre acesso a alguns tipos de arte), de telas como "Noite estrelada" e "Girassóis", pude ver fotos de telas e desenhos de Van Gogh, ler biografias, as cartas ao seu irmão Théo, fazer passeios virtuais a museus que expõem suas telas, comprar camisetas, cadernos, canecas, agendas com suas telas estampadas - kit "Santo Clichê" completo. 
    Nada explica o que vejo. Talvez porque nunca vi, de fato, uma tela do Van Gogh? Talvez. Mas algo me alcança, obstinado.
    Tempos depois, cruzou por mim, no Instagram, a seguinte postagem da página Van Gogh Museum**:

Novamente pra mim:
"O que você vê quando olha esta tela?"

... um par de botinas? ...

        Poderia argumentar a partir do movimento semântico estabelecido entre os verbos "ver" e "olhar" ("to see" - "to look"), o que seria bastante condizente, mas o sentido dos olhos nunca me fora fácil e, nesse revés, a minha memória me destrambelha toda.

        Explico:
        "O que você vê quando olha esta tela?"

        Um dia, estávamos voltando de carona no carro do poeta, várias pessoas. Participamos de um sarau. Houve um momento de certo silêncio vago e tenso e o menino falou:
"- Cara, aquele poema do mar! Putz! Tipo, dá pra sentir o movimento do mar nos versos, tá ligado?! Tem, tipo, uma melancolia, tá ligado?! Um troço assim, véi, muito lôco! Lindo demais!"
    Ao dizer: "Que bom que você gostou!", o poeta parecia saber exatamente sobre qual poema o menino falava.
    Tinha um par de botinas? no tom do menino e uma curiosidade em mim. Queria saber o título do poema, em qual livro estava, mas minha inquietude achou que se eu perguntasse, alguém explicaria o par de botinas...

        Lógica não me vale um par de botinas.

        Muito tempo depois, sem botinas, mar ou melancolia na memória (nada, nem pretensão), livro do poeta em mãos:
VIDA NÁUFRAGA

Sonho é pedra que se atira
da margem ao meio do mar
e morde as ondas e fura água
até naufragar.
 
De pedras constrói-se a vida
 contra a dureza do mar,
castelo de areia que dura
na praia até naufragar.
 
De pedra se faz a jangada
que lança o homem ao mar
que rema a buscar sempre nada
e nada até naufragar.
 
A vida é uma onda que nada
da areia para o meio do mar,
é praia fazer-se de homem
de pedra só para naufragar.

- Santiago Villela Marques*** -

        Um poema com movimento de mar e melancolia. Lindo demais!

        Um delírio técnico - meu! - explicaria facilmente a deslocação marítima e a imagem melancólica que se constrói na combinação sígnica, mas não!, não consegue me explicar o silêncio, a tensão, o ventilador, a noite morna, o deslocamento do carro, a voz do menino vindo do banco de traz, o olhar tímido e grato do poeta ao menino pelo retrovisor, o tom de par de botinas? do menino, a conexão absurdamente aleatória que minha memória (ou seja lá o que for) faz da experiência afetiva que tenho no encontro entre estes 3 corpos: a tela, o poema, eu.
        Eu não sei se foi a esse poema que o menino se referiu apaixonadamente sob a confirmação sincera do poeta. Também não alimento essa curiosidade. O que me nutre é "o raio fixo da poesia" (como nas palavras de Octavio Paz****) que me atravessa o peito nessa conexão inusitada, inexplicável.

Foi essa reposta que dei - em pensamento - à postagem do Van Gogh Museum e que eu daria a professora se ela me perguntasse novamente.

... ou ela rolaria com os dados ou diria que estou completamente equivocada...

Destrambelhada,
Iouchabel Falcão,
24 de outubro de 2021.
*Imagem de capa disponível em: https://www.vangoghmuseum.nl/en/collection/s0011V1962. Acesso em 26 de set de 2021.
** Endereço da página do Instagram do Van Gogh Museum: https://www.instagram.com/vangoghmuseum/
*** Poema "VIDA NÁUFRAGA", do livro Primeiro (2004, p. 20. Edição do autor), de Santiago Villela Marques.
**** Citação tirada do texto "Poesia e Poema", do livro O arco e a lira (2012, p. 33. Cosac Naify), de Octavio Paz.

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