De quando eu quis limpar o para-brisa de um poema parado no sinal


 

"The art never judges.
I envy it.
Life in two dimensions.
Frozen in forever beauty.
To watch the world go by unencumbered by the gossip and the pain of three-dimensional men."
- Edward Pillipe Mott, personagem da série AHS -

 

    Durante a semana em que escrevo estes pensamentos, ouvi algumas vezes, em diferentes contextos e de pessoas diferentes (da academia ao Instagram), que é preciso - em nome da Arte! - prestar real atenção nas coisas do mundo: enxergar a natureza, perceber onde mora a Poesia. E de repente, fui levada pela mão até a primeira vez (de quando estive atenta) que ouvi algo parecido. Foi da professora Luzia que, durante minha graduação em suas aulas de Teoria da Narrativa, passou um exercício pra nós, estudantes, com a proposta de desautomatizar o nosso olhar durante o nosso percurso até a universidade, "enxergando de verdade" as coisas que componha a rota. O objetivo do exercício estava ligado à experiência da descrição enquanto estudávamos os recursos literários na construção de espaços e personagens nos textos narrativos. Não me lembro de tudo que "enxerguei" do meu caminho, não foi uma atividade registrada. 

    Me lembro de uma casa verde de madeira que ficava nos fundos de um terreno bastante comprido e que na frente, alcançando a calçada, cultivava roseiras, dessas simples, de quintal de casa, que se espalham em seu espaço orgânico de forma que, pra o humano, parece livremente. Sobre a cor, as flores me pareciam de um rosa bem escuro, embora às vezes pensasse ver algumas vermelhas. Bem, como percebe, eu não cumpri com o requisito principal do exercício de "enxergar de verdade" as coisas do mundo. Eu poderia gastar algumas orações pra justificar minha falha, mas não vou. Vou orar no que me lembro: o cheiro! Quando a professora passou o exercício, imediatamente pensei: a casa com cheiro de rosas... Eu só sei das muitas roseiras de flores rosas bem escuras e, possivelmente, vermelhas, plantadas aos pés da calçada de uma casa verde de madeira que ficava nos fundos de um terreno comprido porque, quando eu passava por ela, meus olhos eram alçados pelo cheiro das flores. Eu enxergava o cheiro.

    A partir daí, a ideia do "enxergar" as coisas do mundo além do "ver" e do "olhar" se tornou uma constante nos meus dias, como aquela palavra que me parecia nunca ter existido até tê-la ouvido e que, de repente, parece que estava nos alis o tempo todo, só eu que não via (como na estante da Pitty). Mas, até a ideia tomar corpo de gesto, principalmente pra algo tão abstrato, está levando um tempo. Pra minha percepção e sensibilidade, não é fácil enxergar um "para além" no que me rodeia. Sinto, como sempre sou alertada, os meus sentidos e minha linguagem automatizados, acelerados pela regência do espaço e, por artimanha de meus mecanismos psico-defensores, digo a mim, repetidas vezes, que não tenho o Dom...

    Mas eu sei ler! No mais prosaico sentido de alfabetização!

    E, em muitos momentos, a Poesia me deslimita os olhos e a língua e as mãos pra os outros cheiros do mundo. Há um tempo, por exemplo, venho tentando limpar o para-brisa do poema "ARCO-ÍRIS", de Divanize Carbonieri (Carlini & Caniato, 2018, p. 26-7), que canta:

ARCO-ÍRIS

um comprido filamento

se esgueira pela fresta

uma réstia de luz fraca

vaza pelo vão das grades

o fio de ar comprimido

refletido na fina película

da superfície lisa do vidro

fraciona a cor em prisma

um arco-íris de sete raios

purificando a tarde cinza

pairando acima do fluxo

de pedestres e veículos

na via ruidosa das setas e

faróis piscando direções

frenéticas e intermitentes

gradações fatais de destino

rumos engatados em série

fados confusos irradiados

mas no visor organizam-se

várias sutis perspectivas

difundindo uma gama de

alternativas individuais

identificáveis sem grande

e exaustivo esforço de

quem está vigilante e vivo

    Pra mim, este poema tem cheiro de roseira de calçada, e não entendo muito bem se isso precisa de porquês. Ele, em si, é uma simples imagem montada por um complexo de sinais de múltiplas existências. Um arco-íris. E, pra mim, é um poema parado. É como se ele estivesse em seu lugar de Poesia e de onde, de repente, me alça. E eu enxergo um cheiro.

    É possível sim se aventurar pelas linhas analíticas. De certo modo, estou até mesmo treinada - quase pejorativamente - a fazer isso. Porém, não quero, agora, analisar palavras. E qualquer gesto analítico-interpretativo é sempre e também metafórico e, por enquanto, estou na bruma do "enxergar de verdade as coisas do mundo".

(Pausa pra um grande parênteses:)

- O fato é que a linguagem é um imensurável mosaico que montamos da primeira a última pulsação. E não importa a ordem das peças, toda construção é metafórica. O sujeito que diz/escreve sempre está distanciado da coisa, seja ela roseira ou poema. "Dizer" é uma maneira de se aproximar da coisa, seja ela roseira ou poema. Esse pensamento não é meu. Está espalhado por muitos e diferentes livros que compõem o caminho que faço pelos aquis e alis. -

    Neste agora em que escrevo, estou parada no sinal de Poesia do poema e não é a primeira vez que isso me acontece. Preparo a flanela do racional pra limpar o que me tampa a visão pra o filamento que sai da fresta e que, como um fenômeno natural, prisma o meu arco-íris particular. O poema estacionado, e, eu, pedestre e veículo ruidosos e frenéticos. Não enxergo...

Identifico!

    Mas, diferente do poema - que existe em seu autolirsimo -, identifico com esforço que comigo não funciona: talvez eu não consiga enxergar de verdade as coisas do mundo. Talvez não tenha sido dado aos meus olhos o verbo do enxergar, e o que sobra são frações de cor na superfície do vidro que, em frustadas tentativas, eu limpo, como se houvesse sujeira. O meu arco-íris particular é mais poético que tangível, e só às vezes e muito de repente, antes de limpá-lo, consigo sentir sua textura.

    Prefiro acreditar na sujeira imaginária que olho, pois, assim, a cada esfregada que dou na superfície do poema, abro a fresta para que ele me enxergue de verdade como coisa do mundo que sou. Prefiro acreditar que sua Beleza, misteriosa e eterna, enxerga de verdade minha pena de existir. E, enquanto lamento, espero o cheiro de Poesia que solta das réstias que lustro.

(E que sempre alcance minhas narinas vigilantes e vivas, Amém!)

    Neste agora, tenho, em casa, uma pequena roseira, muito simples, ilhada num vaso marrom de plástico. Quando floresce, ela cheira à casa verde de madeira...


Um cheiro e uma rosa!
Iouchabel Falcão.

28 de janeiro de 2021.


CARBONIERI, Divanize. Grande depósito de bugigangas. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato, 2018, p. 26-7.

Um dos meus títulos de livros favoritos! 💕


                                        - Peço perdão por qualquer desvio ortográfico ou gramatical que te incomodar! -


Comentários

Postagens mais visitadas