Um poema bateu em minha porta (e eu abri)

"Chega tem hora que ri de dentro pra fora
Não fica nem vai embora, é o estado de poesia."
- Chico César -

       Acontece e eu nem sempre percebo. As minhas continuidades são inevitáveis e é possível que o tudo derive de uma única causa. Digo que é possível porque ainda não é real pra mim.
    Estou num momento de leitura insistente de "Ética", de Spinoza, um texto que se move numa espiral infinita de infinitudes em que tudo é efeito de 
"Deus [...] um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita." (SPINOZA, 2020, p. 13)¹
    Sim! Tudo nesse texto é infinito em torno desse estribilho da causa eterna e infinita do sei lá o quê... Seria um texto facilmente lido como religioso, como uma ode às "onis" do deus mais cultuado; o que não é meu caso devido (penso...) ao meu ateísmo (definição mais próxima que dou a mim mesma pra minha relação com esse mesmo deus) e do meu lugar de ignorância às especificidades tanto da filosofia quanto de Spinoza (e quanto de Deus...) que tenho.
    O que faz muito sentido pra mim é a ideia de busca da origem que o Spinoza me esfrega na cara e institui - pleno e convicto (e por mais de insistentes e reiteradas 200 páginas) - que nada se deve buscar, porque a origem é Deus, causa do tudo, e que, por ser eterno e infinito, a existência é um dos infinitos atributos da necessidade de sua natureza: Deus, única substância. E
    eu
    efeito
    de
    Deus
    Eu não sei qual ou o que é a causa porque, como suponho que pensaria Spinoza, eu deliro: 
"Mas, ao tentar demonstrar que a natureza nada faz em vão (isto é, não faz nada que não seja para o proveito humano), eles parecem ter demonstrado apenas que, tal como os homens, a natureza e os deuses também deliram."(SPINOZA, 2020, p. 43)¹
Sendo assim:

    Meu existir é delírio. Já entendi que não sei qual é a causa: como saber a Origem? Muito se explicaria pra mim se eu conhecesse (será?) ou, talvez, eu esteja me projetando na certeza absoluta que emerge desse texto exaustivo. Muita certeza me cansa (eu ando tão cansada...).
    Mas acontece, às vezes, de algo me continuar, mais ou menos afetado, como que fora do esperado, muito embora eu sempre espere...

    Era uma sexta-feira, 

e recebi o livro "Jardim de Ossos" (Carlini & Caniato, 2020), da poeta Marli Walker. Eu estava ansiosa pro esse livro, pois tive o privilégio de ouvir na voz da Marli, pra mim (isso me é lindamente importante), alguns dos poemas enquanto o livro ainda estava em projeto. E, dos poemas que me foram lidos, circulou uma energia, naquele momento, inexplicável. Me afetaram o corpo, choques íntimos que engordam os poros, espetam o coração, espremem os pulmões, revolvem os intestinos, umedecem as pálpebras, rubram as bochechas, esfriam as pontas dos dedos, e que, no momento quase exato dos sentidos, resumi em: "fiquei emocionada!". 
(Na verdade, essa é uma tentativa de explicação muito simplista que não diz nada, não faz sentido. Qual é o sentido em dizer "fiquei emocionada"? Talvez, nada signifique, mas se sinta; ou nada signifique e se sinta. Não sei, o corpo afetado é irredutível à linguagem.)
    Guardei o livro por um dia. Deixei pra brincar com ele no sábado, dia com barulho de liberdade infantil. Quando um livro de poemas pousa em minhas mãos, dificilmente leio em sua ordem de edição, nem pra algum trabalho crítico ou analítico. Eu fico, antes, buscando no aleatório um não sei o que lá dentro. E, dessa vez, eu estava buscando aqueles poemas, porque queria sentir novamente aquele "HÂM" (não tenho palavras nem aproximadas).
    Passei, foi lindo, não foi a mesma coisa, porque aquilo foi o que deveria ter sido no aqui-agora daqueles dias. A emoção não acabou; ela se estendeu numa racionalização que eu já vinha praticando há algum tempo.

(Espaço pra um breve parênteses:)
Não que eu considere a racionalização uma anuladora das emoções. Longe disso! Em muitos casos, o meu corpo reage à racionalização da mesma forma que reage a momentos meus de subjetividade inexplicável. Em metáfora, penso que razão e emoção percorrem o mesmo caminho com chinelos diferentes. Só isso...

    Foi um espectro de uma continuidade que se alimentava da ansiedade da busca por objetos próximos que me conduzissem àquele lugar de origem, à causa primeva daquela reação física revestida pelo signo da emoção.
    Passou contínuo...
    De repente, ouvi bater na porta do peito:

Entulho

uma cova rasa
serve para enterrar trastes
(antes isso que um
entulho de esqueletos)

ainda ontem topei (de cara)
com o espectro de um amor
(insolente) à porta do quarto
dei de ombros
voltei à cozinha
(à meia noite)
passei café
fumei um cigarro
escrevi este poema capenga
(entulho gigante)
busquei no dicionário 
a devida solução
e ainda faltam palavras

nem sempre se enterra
com meia pá de terra
o peso de um coração

- Marli Walker - 

    Eu fiquei (delirante e) obcecada! Foram inúmeras leituras, todas em voz alta. Eu queria cantar o poema pra os meus vizinhos da janela do mundo. Queria tanto que continuei lendo em voz alta e, quando dei por mim, já o tinha decorado. Cantei pra o requeijão que estava fazendo. Fiz vídeo pra o Instagram (o que me é muito caro!). Assisti ao meu próprio vídeo pra ver alguém cantar pra mim. Tudo isso como uma resposta pra inquietação do meu corpo: meus pulmões arfavam mais fortes, meu coração ficou um pouco acelerado, meus membros buscavam funções pra descarregar a energia estranha (muito ao contrário do comum de mim, que sou adepta à inércia e apatia).
    No dentro, eu queria mesmo era que aquilo tudo passasse, por a mão no chão; entrar naquela cova rasa; suportar, uterina, o peso dos entulhos da Terra na quietude dos trastes, escondida dentro daquele dicionário inútil.
    Toda essa imagem prosaica e ordinária sempre me afeta. A experiência do todo dia, que é minha, espelhada pela poeta, me espantando de ser gente em Poesia, com cheiro de café e cigarro na cozinha (à meia noite). Ser gente é assustador. Tranquilo foi Spinoza que acreditou ser atributo de Deus.
    Fiquei o resto da noite dando rodadinhas nos versos que ficaram cada vez mais insolentes que o amor à porta do poema, brincando de ser indizível, insolúvel. E eu querendo fugir pra o dentro (ir pra o olho da rua me seria mais aterrorizante).
    É assim que a Poesia continua em mim. Como um efeito. Às vezes latente, às vezes vibrante. Traz no som a lembrança de uma existência antecedente e comum. Vem em verso, em prosa, nos filmes e clipes musicais, em conversas no WhatsApp. Vem hermética, exultante, livre, ordinária. Vem no às vezes, com menos frequência do que eu gostaria (nunca é demais destacar que sou pouco sensível e muito displicente ao existir. Contei isso em posts anteriores). Mas vem. Vem pra me perturbar, petulante, me entulha com um monte de sentidos inexplicáveis que, também às vezes, entoo tão petulante e pretensiosa quanto ela (a Poesia) nos limbos acadêmicos.
   
    Foi numa noite de sábado.
    E desde então estou aqui, traste, rasa e pesada, enrolada na corda que pulei deitada...


Enterrada em meia pá de terra,
Iouchabel Falcão.
14 de fevereiro de 2021.

¹ SPINOZA, Benedictus. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. - 2. ed. Belo Horizonte-MG: Autêntica, 2020.
² WALKER, Marli. Jardim de Ossos. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato, 2020, p. 55.

- Peço perdão por qualquer desvio ortográfico ou gramatical que te incomodar😉! -

Comentários

  1. Pas-sa-da!
    Que incrível acompanhar tua experiência de leitura, Iouchabel!

    Obrigada!

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  2. O livro é maravilhoso. O depoimento de Louchabel, inexplicavelmente tocante e lindo.

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  3. Uma prosa-poética que desponta vigorosa no seu querer existir.

    Parabéns, Iouchabel!

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