Nem sei o que isso significa #2...


 

"There ain't no reason things are this way
It's how they always been and they intend to stay
I don't know why I say the things I say
But I say them anyway
But love will come, set me free."
- Brett Dennem -

 


 Poesia não existe, ela É 

(nos diz Paz - e outros - por páginas e páginas e páginas...).  

    Poesia É, sempre, no aqui-agora. 
    Poesia É, intransitiva. E não precisa do corpo da palavra. 
    Sou do pensar que a Poesia está num conjunto inseparável de emoção, sentimento e afeto. O objeto metafísico mais possível que existe.
    Ela é pronta pra qualquer outro ser de linguagem que se nutre, dia após dia, do ofício de existir.
    Ouso dizer, pegando emprestado da filosofia de Spinoza, que Poesia é o principal atributo (dos infinitos atributos) de Deus. Nisso também falo de ateia pra ateus: "Deus" como nome mais comum pra "causa" de tudo isso aqui.
    Uma coisa que costuma me incomodar é um número abusivo e concordante de discursos de que Poesia é só(!) mais um artifício da linguagem - posto em alguns portos teóricos como oposto à comunicação (como isso é possível?) - , categorizado(!), na maioria das vezes, como inacessível(!). 

INACESSÍVEL!

Vamos lá! Houaiss¹ à mão:
"inacessível adj. 2g. 2 que não se pode atingir ou alcançar com o entendimento; incompreensível <tais conceitos são-me i.> 3 não suscetível de se deixar influenciar, penetrar ou comover; insensível, imune, refratário <i. a emoções>."
    É notável que, na maioria dos relatos de "poesia inacessível", Poesia e poema são tidas como sinônimos (não estou aqui pra dizer que não seja; apenas de que isso é possível de ser repensado). Outro dia, vi pelos stories do Instagram uma pessoa (de quem gosto bastante) apresentando um "recebidos" de uma livro de poemas que fez o seguinte comentário: "são poemas que dão pra entender, não aqueles que deixam a gente no vácuo, sabe?" Achei um comentário interessante como mais uma espécie de versão da "poesia inacessível" (como se aquele livro anulasse outros por ser "acessível"), porque relatos como esse revelam uma espécie de mea culpa que transita entre a acusação e a confissão de que a inteligência é um pré-requisito à Poesia: ou se acusa o poema/poesia/poeta de inteligível ou o eu confessa não ter capacidade intelectual suficiente pra entender a poesia/poema/poeta.
    Compreendo tudo isso como um direito de nós, leitores, e não tiro a razão do comentário. Estou aqui em busca do que me afeta o incômodo de inacessibilizarem a Poesia num lugar incomum a maioria de nós. Me incomoda quando colocam nossa inteligência a serviço de um poema, nos estancando no limiar entre o capaz e o incapaz. 

"Parabéns! Você conseguiu ler o poema! Você é inteligente! Você sabe ler Poesia!" 

 ... ou não...

Quanta besteira...

    A culpa pode ser bem perigosa, pois, tenho por mim, que é ela que nos distancia da Poesia, colocando esta no altar de famigeradas virtudes do pensar superior.

    Mas acontece que a Poesia É. 
    E ela é, por minha definição, aquilo que expressa um sentir. E aqui levanto a minha principal hipótese, oferecendo a ela uma transitividade em predicativo do sujeito: a Poesia é uma experiência. E, como toda experiência, ela é construída no ver, no ouvir, no tocar e no engolir as coisas do mundo. Ou seja, não há na Poesia nada de sobrenatural e extraordinário que possa ser reservado a um tipo superior de seres humanos, pois todos nós vemos, ouvimos, tocamos e engolimos as coisas mundanas, cada um dentro de seus limites experienciados. 
    Não há limites pra Poesia, mas há pra nossas experiências. Não é que eu não entenda este ou aquele determinado poema porque eu não tenho capacidade intelectual pra isso. Não! É que aquela imagem projetada pelo poema não condiz com nenhuma de minhas experiências. Mesmo o novo exige o polo oposto do já vivido pra ser identificado como novidade. E não é a "qualidade" do poema que determina valor à Poesia - outro assunto caro nos Olimpos acadêmicos -: é o encontro dos sentidos.
    Peço ajuda às palavras de três poetas pra dizer de outro jeito o que estou divagando:

Edgar Allan Poe

    No texto "A filosofia da composição", Poe escreve sobre o seu poetar através da demonstração do processo criativo de "O corvo", seu poema mais conhecido. Racional em seu estado poético, Poe demonstra apreço especial pra condição formal do poema, priorizando o que ele chama de "efeito" como causa primeira tanto pra leitura quanto pra escrita. Segundo ele, o efeito é resultante da conjunção da "intensão" com a "extensão" do texto. Logo no início, Poe nos dá uma imagem preciosa da experiência (ou "do sentir") poética do poetar quando diz:
"Tendo escolhido um efeito, em primeiro lugar original, em segundo lugar vívido, me pergunto se para melhor atingi-lo caberia recorrer a incidentes ou ao tom - se incidentes corriqueiros e um tom peculiar, ou o contrário, ou então tanto incidentes quanto tom caracterizados pela peculiaridade -, em seguida olho à minha volta (ou melhor, para dentro de mim mesmo) em busca das combinações de incidente e tom que mais me ajudarão a construir o efeito." (POE, 2019, p. 58. Grifos meus)²

Paul Valéry

    Outro texto bastante conhecido pelos corredores acadêmicos da Poesia é o "Poesia e pensamento abstrato", do poeta Paul Valéry. Nele, vários pensamentos discorrem a fim de diferenciar o que, para Valéry, é um pensamento que cria uma poesia e um pensamento apenas filosófico, resumindo de maneira pecaminosamente grosseira. Ainda no início do texto - que nasceu pra uma conferência- e antes de nos contar uma história sua em que também associa o embrião poético a uma espécie de incidente (deixo aqui a minha forte recomendação de leitura pra quem se interessar), o poeta revela:
"Quanto a mim, tenho a estranha e perigosa mania de querer, em qualquer matéria, começar pelo começo (ou seja, por meu começo individual), o que vem a dar em recomeçar, em refazer uma estrada completa, como se tantos outros já não a houvessem traçado e percorrido..." (VALÉRY, 2007, p. 194. Grifo do autor)

Alice Sant'Anna

    Um poema, apenas...

um enorme rabo de baleia


cruzaria a sala nesse momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela


(SANT'ANNA, 2013)**

Sobre o que me impede de terminar...

    Os três textos partem de experiências de eus/Poesia. Eus que equivalem a encontros de mim, do experimento das existências que, paradoxalmente, não são as mesmas, mas que, às vezes, por acidente, cruzam seus seres com os meus sentidos nos caminhos do descuido e que me fazem sentir uma espécie de outro eu de mim.
    Pra dentro de mim, há o efeito que torna poemas acessíveis, não em metáfora e outras conjugações formais, não a meu intelecto, mas a minha experiência de efeito. Eu, que pensava quem meus começos eram individuais, porém, começo-os, faço-os traçados e percorridos como/com os de Valéry. E o meu desejo se confunde a essa voz lírica desejante na paixão involuntária por abraçar esse enorme rabo de baleia...
    Nesses dias de inacessibilidade de ser, eu não consigo entender, compreender o que é um enorme rabo de baleia numa sala. Contudo, sinto... não estou imune a ele... ele penetra na minha existência.. ele comove minha imobilidade refratária... ele me mostra o quanto estou abandonada no vácuo dos sentidos...
    Não me sinto insensível, me sinto influenciada a me entendiar, porque na minha experiência, o tédio é o desejo enorme de abraçar um rabo de baleia. Nem sei o que isso significa...

Com a mão esticada em busca de um copo d´água,
Iouchabel Falcão,
Domingo, 07 de março de 2021.


¹ Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, Editora Objetiva, 2009.
² O corvo, Editora Companhia das Letras, 2019.
³ Variedades, Editora Iluminuras, 2007.
** Rabo de Baleia, Cosac & Naify.

_ Peço perdão por qualquer desvio ortográfico que possa te incomodar.-

Comentários

  1. Nada pode me incomodar num post tão bonito como esse, sobre baleias (não só, mas muito). Descobri agora que é um blog.

    Um beijo

    Marília

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