Nem sei o que isso significa...

"no fim o Verbo
para primeiro a Vida."
-Santiago Villela Marques -
O filósofo italiano Giambattista Vico, entre os séculos XV e XVI, num texto chamado "Ciência Nova" (e num capítulo com o belíssimo título: "Da metafísica poética, que nos dá as origens da poesia, da idolatria, das adivinhações e dos sacrifícios"), elaborou o pensamento de que, no princípio da humanidade, os seres humanos descobriram em si a linguagem a partir do que o pensador chama de "sabedoria poética". Resumindo de maneria bem grosseira o que sempre está aberto a diferentes - porém , limitadas - possibilidades de leitura, a "gentilidade" ou "tais homens primevos" nomeavam o que os sentidos alcançavam de acordo com o quê e como as coisas da natureza os afetavam.

    Visualize: as primeiras palavras que nomearam o mundo, em seu corpo metafísico (tangível ao incontestável), são chamadas, por Vico, de "poéticas", que diz:

"[...] a sabedoria poética, que foi a primeira forma de sabedoria da gentilidade, precisou de começar de uma metafísica, não racional e abstrata, [...] mas sentida e imaginada [...]. Esta foi para eles a própria poesia, que para eles constituiu uma faculdade que lhes é conatural [...], provinda de uma ignorância de razões, sendo-lhes a matriz de maravilharem-se de todas as coisas. E eles, justamente por ignorantes de todas essas coisas, fortemente se encantavam delas, [...]." (VICO, 1988, p. 181. Grifos meus)

    Imagine: as coisas passaram a ser no mundo a partir de um maravilhamento, de um sentimento, de uma imaginação fortemente encantadora. Poesia em gesto divino e mítico, de criação. Não que as coisas do mundo não existissem antes disso. Não! Elas estavam ali. Mas, para o ser humano, elas passaram a ser - antes do existir - depois do sopro poético, de uma linguagem que gesta, nas entranhas do corpo, sons que se transformam em coisas do mundo.

Nem sei o que isso significa... 

    Penso: quando esta imagem trazida por Vico é construída em mim,

o que sei de Poesia?
o que sei de poética?
o que sei de sabedoria?
o que sei eu de encanto?

    Eis minhas possíveis respostas (tentativas vãs de racionalização):

1- Poesia é uma manifestação artística que pode ser encontrada em diferentes suportes, porém, é mais comumente associada ao gênero poema (texto escrito);

2- a poética é a forma que constrói imagens através de recursos próprios de cada suporte e/ou gênero;

3- a sabedoria é uma espécie de acumulação de conhecimento e informações feita durante o processo de desenvolvimento racional e intelectual;

4- o encanto é um sentimento humano (redundante, talvez...) expresso diante de coisas que despertam uma sensação positiva de prazer.

(Me perdoe, estou insuportavelmente racional enquanto escrevo este texto)

- Essas são minhas definições feitas da maneira mais rápida a partir do que há em minha cabeça (como foi parar dentro de minha cabeça é algo mais complicado de explicar... se é que tem explicação) -.

    Não sei pra você, mas, pra mim, minhas definições não tem graça nenhuma. Sem encanto, sem maravilhamento, sem poesia nenhuma. Não sou poeta. Talvez eu não seja sensível à linguagem e às coisas do mundo da mesma maneira em que outros não-poetas parecem escrever e também criar o mundo e que - esses sim - me encantam. Não escrevo como Vico, Octavio Paz, Alfredo Bosi, Santiago Villela Marques, Ricardo Guilherme Dicke, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Hilda Hilts, entre outras e outros e vários, nessa mistura gostosa de quem não precisa de título pra me maravilhar.

    Tenho hipóteses: acho que é porque, no mundo em que passei a existir, as coisas já são. Eu só tenho que saber que são. Eu não preciso gestar som, parir palavras para que as coisas sejam. Elas existem, têm seus nomes, e quanto mais eu expandir meu espaço de existência, mais terei a chance de me deparar com um ser que não fui eu que nomeei. Eu nem me dou a esse trabalho. Estou acomodada a uma sabedoria prática e falsamente eficaz pra meus problemas de ignorância.

"Sabedoria poética" x "sabedoria prática"

    "Prática" é a palavra amarga que minha sabedoria alcança, é a palavra-troféu que premia minha maldição de não ser ignorante e de não ser poeta. Depois de ler o pensamento de Vico (que, por razões que não quero racionalizar, me afetam profundamento), continuo na minha esteira intelectual (andando sem sair do lugar): passeio por aulas; navego por livros; estudo por textos curtos, longos, claros e indecifráveis, poemas e narrativas; exibo meu pedantismo em comunicações e artigos científicos; preencho lattes; faço amizades e inimizades enquanto alimento minha "sabedoria prática". E continuo sem saber o significado de nada...

    De volta aos sabedores poéticos: eu imagino a doideira que é isso de sentir a mais pura forma de nomear/ser as coisas do mundo, apenas seguindo o impulso interno do corpo, o ar se contorcendo por todos os seus espaços viscerais, modelando-se na métrica da vogal, sem nenhum compromisso com um "original" por ser o próprio Ser das coisas, a própria origem, 

"pois ao mesmo tempo em que eles imaginavam as razões das coisas, contemporaneamente as sentiam e admiravam como divinas." (VICO, 1988, p. 181)

    Nessa versão filosófica do Éden, Vico repete por todo o texto as palavras "ignorância" e "ignorante" que não chegam até mim como pejorativas*. Ao contrário, eu sinto inveja. Eu queria essa "ignorância primeva", essa "natureza animal dos homens", esses "robustos sentidos"essas "vigorosíssimas e corpulentíssimas fantasias". O filósofo ainda usa (pra mim) de ousadia platônica quando diz:

"Já as crianças, [...] o fazem [criam as coisas] com uma maravilhosa sublimidade, tamanha e tão considerável que perturbava, em excesso, a esses mesmos que, fingindo, as forjavam para si, pelo que foram chamados 'poetas', que, no grego, é o mesmo que 'criadores'". (VICO. 1988. p. 182. Grifos meus)

    O poeta forja a sabedoria poética da criança - taí Manoel de Barros pra chancelar essa premissa - pra com isso receber o selo de "criador". Sendo assim, estou ainda mais abaixo na casta criativa: não sou criança, não sou poeta, não sou ignorante... ainda...

    Penso se, em algum momento, eu me aproximei de alguma experiência metafísica e sensorial da "sabedoria poética" (não questiono seu critério de verdade porque, pra mim, é inquestionável) e me vêm a mente (por favor, sem porquês) os versos da última estrofe do poema "PERGUNTAS QUASE SEM IMPORTÂNCIA" (MARQUES, 2004, p. 39), também do Santiago (como a epígrafe desta postagem), que me tiram do estado do pensar e me acolhem no estado do sentir (uma metafísica da idealização...):

"Que é isso, esse vício, que nutrimos,

esse foço, esse sopro, afogado em sustos,

esse aborto que parimos,

esse monstro que amamos

e exibimos em sons e rimas,

esse estrume que afagamos

esperando flor e canto,

esse húmus podre e infecundo

gestando sombras como cores

e angústia como o dia?

 

            É a Vida

            É o Mundo

            É a Poesia."

 

Sem mais saberes,

Iouchabel Falcão

17/01/2021

* Digo isso porque não sou especialista em Vico ou em filosofia ou em filosofia italiana de onde costumam surgir as problematizações.

Textos citados:

VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova. In: ______; BRUNO, G. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MARQUES, Santiago Villela. Primeiro. Sinop-MT: Edição do autor, 2004. 


- Peço perdão por qualquer desvio ortográfico ou gramatical que te incomodar! -


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